Uma ponte, dois inimigos
Em Mostar, uma escola tenta pacificar a tensão entre bósnios muçulmanos e croatas católicos
Por Renata Summa (Publicado 10/08/2010 em Carta Capital)
Mostar, Bósnia-Herzegovina. Miky ouve atentamente o pai, Milomir, contar como aquela ponte, construída no século XVI, sobrevivera a todas as guerras menos à última, 15 anos atrás. “Foram os sérvios que fizeram isso, pai?”, pergunta o garoto de 7 anos. A tensão aumenta, e Miky é prontamente repreendido. “Não fale essa palavra aqui, em voz alta”, aconselha Milomir, visivelmente perturbado.
Um turista desavisado que visita Mostar, a cerca de 70 quilômetros da fronteira croata, talvez não se dê conta da pesada herança deixada pela última guerra, que matou entre 100 mil e 200 mil pessoas. Mas basta se aventurar alguns metros fora do charmoso centro histórico ou conversar com seus habitantes para descobrir, 15 anos após o fim da guerra, uma cidade profundamente dividida entre bósnios muçulmanos e croatas católicos. os sérvios, ortodoxos, foram-se há muito.
Apesar de recente, a segregação é quase total: administrações divididas, escolas separadas, programas de rádio e tevê próprios e até times de futebol rivais. Em um canto da cidade, bandeiras croatas tremulam e os sinos convidam para a missa católica. Depois da guerra, uma imensa cruz foi colocada no topo de uma colina, provocando protestos dos habitantes do outro canto da cidade, onde a voz do muezim a anunciar a oração ressoa dos minaretes.
Milomir é considerado bósnio-muçulmano, apesar de não ser praticante. Antes da guerra era apenas bósnio. Cresceu na casa da família, localizada na região oeste de Mostar – atualmente habitada quase exclusivamente por bósnio-croatas. Ele conta que, em 1992, bósnio-croatas e muçulmanos se uniram para lutar contra os sérvios, que chegaram pelas colinas no entorno da cidade para reverter por meio da força a independência – devidamente reconhecida pela comunidade internacional – da Bósnia-Herzegovina.
Adolescente na época, não entendeu como os aliados puderam se transformar em inimigos no ano seguinte. Foi com surpresa que se tornou prisioneiro de guerra dos croatas aos 16 anos. Alguns meses depois, conseguiu atravessar para Mostar-Leste, que a essa altura já havia se tornado um reduto bósnio-muçulmano. De lá, refugiou-se nos Estados Unidos, de onde volta apenas nas férias, com os dois filhos e a mulher, uma filipina católica. A família que restou possui um bar ao lado da Velha Ponte, em Mostar-Leste. Eles fazem parte dos três quartos dos habitantes que fugiram da cidade ou mudaram de lado desde o fim da guerra.
“As fotos de destruição do centro histórico que você vê não são nada comparado ao que eu vi e vivi”, explica Milomir, que perdeu gente da família nos conflitos e ainda chora ao se lembrar da guerra. “As feridas ainda estão muito abertas.”
Do outro lado da cidade, mas igualmente vítima, mora Jadremka. A empresária refugiou-se com seus filhos na Noruega no início da guerra, mas voltou em 1994, um ano antes da assinatura do Tratado de Dayton, que pôs fim ao conflito no país. Jadremka apresenta uma Mostar que ainda não se reergueu. “Aqui, antes da guerra, escola de música. Ali, antes da guerra, centro comercial.”
Jadremka é proprietária de um apartamento no centro novo, a dois quarteirões da famosa Boulevar, avenida que corta a cidade em duas. Antes da guerra, a Boulevar- era a principal via da cidade. Durante a guerra, foi o front onde tropas bósnio-croatas e bósnio-muçulmanas se enfrentaram. Hoje, assemelha-se a uma avenida fantasma, onde a vegetação cresce nos esqueletos de prédios que sobreviveram à tragédia. Ou, ainda mais sinistramente, a avenida demarca o fim da cidade muçulmana e início da bósnio-croata, e vice-versa.
A maioria dos habitantes de Mostar costuma respeitar essa divisão e não vê motivos para cruzar a linha. Muitos jovens croatas que nasceram após a guerra não conhecem “a ponte”, patrimônio mundial da Unesco e símbolo da cidade. Sua reconstrução, em 2004, após ser bombar-deada pelos bósnio-croatas em 1993, foi vista pela comunidade internacional como o começo de uma reconciliação, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido.
O início de uma solução pode estar localizado na própria Boulevar. Abrigado no interior de um edifício austro-húngaro e único prédio restaurado da principal avenida, está o United World College de Mostar (UWC), primeiro colégio do mundo a reunir jovens oriundos de zonas de conflito e único na Bósnia atual a integrar alunos das três principais comunidades – croatas, muçulmanos e sérvios – na mesma turma.
A escola, que funciona em Mostar desde 2006, faz parte de uma rede internacional fundada após o término da Segunda Guerra Mundial, baseada na ideia de que a educação de adolescentes em ambientes multiculturais poderia criar sociedades mais tolerantes e pacíficas. A unidade de Mostar, mais especificamente, tem como objetivo contribuir para a reconstrução de uma sociedade pós-conflito por meio da educação. Dessa forma, o United World College de Mostar luta contra a segregação imposta ao país desde o fim da guerra.
O sistema escolar do país acompanha a mesma lógica, e a Bósnia possui hoje três currículos diferentes, um para cada comunidade. Os programas, sobretudo de história, variam conforme o grupo. “Em algumas partes da Bósnia, alunos de comunidades diferentes frequentam a mesma escola, mas não estudam o mesmo currículo. Muitas delas adotaram um ensino em dois turnos para que as crianças não se vejam”, explica Meri Musa, coordenadora pedagógica do UWC. “O que fazemos aqui é o contrário. Possuímos um único currículo e todos os nossos alunos dividem quartos em residências estudantis. Eles adoram poder conhecer uns aos outros, o que muitas vezes é impossível nas suas comunidades de origem.”
Musa relata histórias de sucesso: duas bósnias que frequentavam a mesma escola, mas sob currículos diferentes, tornaram-se grandes amigas no UWC. Um aluno de Mostar que tinha pavor de cruzar a cidade pediu para morar numa residência “do outro lado” em seu segundo ano. Entre os cerca de 150 alunos há ainda histórias de amizade entre um sérvio e um croata, entre um sérvio e um kosovar e, inclusive, entre um palestino e um israelense. O colégio abriga jovens de todas as repúblicas que compunham a Iugoslávia, além de iraquianos, ruandeses, sudaneses e outras 20 nacionalidades.
Todas as manhãs, esses jovens que conheceram os traumas da guerra deixam suas residências – cada uma localizada de um lado da cidade – e cruzam a linha imaginária que divide Mostar para chegar à escola.